Direito Tributário

O início do ano de 2022 trouxe a edição da Lei Complementar nº 190, sancionada em 04.01.2022 e publicada em 05.01.2022 (“LC 190/22”), que regulamentou o diferencial de alíquotas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação – “ICMS” nas operações interestaduais destinadas a consumidores finais não contribuintes do imposto.

O que aparentava ser uma boa notícia, a regulamentação por lei complementar do art. 155, inciso II, §2º, inciso VII da Constituição, alterado pela Emenda Constitucional nº 87/2015, trouxe em realidade enorme insegurança jurídica para os contribuintes quanto à demarcação dos efeitos da LC 190/22: eficácia (a) após noventa dias da publicação da LC ou (b) a partir de 01.01.2023 (exercício financeiro seguinte à edição da lei)?

Tal divergência tem origem na interpretação do disposto pelo artigo 3º da LC 190/22, segundo o qual “Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, observado, quanto à produção de efeitos, o disposto na alínea ‘c’ do inciso III do caput do art. 150 da Constituição Federal”.

Importante frisar que o Congresso Nacional conclui em 2021 a votação do Projeto de Lei Complementar nº 32, de 2021 (“PLP 32/21”), origem da LC 190/22. Ocorre que a sanção da Presidência da República adveio somente em 04.01.2022, com publicação em 05.01.2022.

Com receio de queda na arrecadação, os Estados e o Distrito Federal, por meio do Conselho de Política Fazendária (“CONFAZ”), veicularam o Convênio 236, de 27.12.2021 (“Convênio CONFAZ 236/21”), publicado em 06.01.2022, mediante o qual entenderam pela possibilidade de cobrança do DIFAL a partir de 1º de janeiro de 2022. Note-se que o Convênio CONFAZ 236 refletiu a reunião realizada entre os Estados em 27.12.2021, embora tenha sido publicado após a LC 190/22.

Este é o contexto de insegurança jurídica que envolve a regulamentação e a cobrança do DIFAL ICMS nas operações interestaduais destinadas a consumidores finais não contribuintes, as quais, com o dinamismo do comércio eletrônico, têm importância arrecadatória essencial para os entes federativos.

Entendemos que a possível solução da questão deve considerar o contexto constitucional e as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (“STF”) acerca do tema.

 

Breve histórico quanto à tributação via ICMS das operações interestaduais destinadas a consumidores finais não contribuintes

De acordo com a redação original do art. 155, inciso II, §2º, inciso VII, alínea “b” da Constituição, as operações interestaduais a consumidores finais eram tributadas tão somente pelo Estado de origem, mediante a aplicação da alíquota interna.

Com isso, o efeito da referida disposição constitucional implicou em tributação não equânime entre os entes federativos, prejudicando a arrecadação dos Estados destinatários das operações mercantis ou das prestações de serviços a consumidores finais não contribuintes do ICMS.

Para “corrigir” essa distorção, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 87, de 16.04.2015 – publicada em 17.04.2015 (“EC 87/15”), que estabeleceu que “nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual”, conforme nova redação conferida ao inciso VII do art. 155, inciso II, §2º, da Constituição, com revogação das alíneas “a” e “b”.

Criou-se então o denominado diferencial de alíquotas do ICMS (“DIFAL ICMS”) nas operações interestaduais destinadas consumidores finais não contribuintes do imposto.

Em relação a tais operações interestaduais, o legislador da EC 87/15 também estabeleceu ao remetente da mercadoria (ou prestador de serviço) a responsabilidade pelo recolhimento, ao Estado destinatário, do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual, de acordo com a nova redação do inciso VIII, alínea “b”, do artigo 155, inciso II, §2º, da Constituição.

Em síntese, anteriormente à EC 87/15, a operação interestadual a consumidor final não contribuinte envolvia tão somente uma única relação jurídica tributária: a) sujeito ativo: Estado de origem; b) sujeito passivo: contribuinte remetente da mercadoria ou prestador de serviço, e c) objeto: crédito tributário de ICMS calculado com base na alíquota interna do Estado do remetente.

Com o advento da EC 87/15, operações interestaduais a consumidores finais não contribuintes abrangem duas relações jurídicas tributárias, a saber:

Relação Jurídica 1                                                    Relação Jurídica 2

Sujeito Ativo: Estado do remetente                          Sujeito Ativo: Estado do destinatário

Sujeito Passivo: Remetente                                       Responsável Tributário: Remetente

Objeto: ICMS alíquota interestadual                        Objeto: ICMS diferença alíquotas

 

Tendo em vista a demarcação constitucional estabelecida pela EC 87/15 e a outorga de competência para a criação de nova obrigação tributária, o DIFAL ICMS nas operações interestaduais destinadas consumidores finais não contribuintes do imposto configura matéria reservada à edição de lei complementar, nos termos dos arts. 146, inciso III, alíneas “a” e “b” e 155, inciso II, §2º, inciso XII, alíneas “a” a “d”, ambos da Constituição.

Não obstante a ausência de lei complementar instituindo o DIFAL ICMS nas operações com consumidores finais (não contribuintes) situados em outros Estados, os entes federativos veicularam o Convênio CONFAZ nº 93, de 17.09.2015 (“Convênio CONFAZ 93/15”), e passaram a exigir o diferencial de alíquotas nas referidas operações.

A existência de duas relações jurídicas tributárias relativas às operações interestaduais a consumidores finais não contribuintes a partir da EC 87/15 e a necessidade da edição de lei complementar a respeito, constituiu o fundamento jurídico que levou o STF a declarar, em 24.02.2021, por meio dos julgamentos da ADI nº 5469, que teve como Relator o Ministro Dias Toffoli, e do Recurso Extraordinário nº 1.287.019, que teve como Relator o Ministro Marco Aurélio, a inconstitucionalidade do Convênio CONFAZ nº 93/15, que não poderia disciplinar tal matéria haja vista tratar-se de exclusiva competência de lei complementar.

Neste ponto, é elucidativo o trecho parcial da ementa do julgamento da ADI nº 5469 pela Suprema Corte:

                                  “3. Especificamente no que diz respeito ao ICMS, o texto constitucional consigna caber a lei complementar, entre outras competências, definir os contribuintes do imposto, dispor sobre substituição tributária, disciplinar o regime de compensação do imposto, fixar o local das operações, para fins de cobrança do imposto e de definição do estabelecimento responsável e fixar a base de cálculo do imposto (art. 155, § 2º, XII, a, b, c, d e i).

                                  4. A EC nº 87/15 criou uma nova relação jurídico-tributária entre o remetente do bem ou serviço (contribuinte) e o estado de destino nas operações com bens e serviços destinados a consumidor final não contribuinte do ICMS. Houve, portanto, substancial alteração na sujeição ativa da obrigação tributária. O ICMS incidente nessas operações e prestações, que antes era devido totalmente ao estado de origem, passou a ser dividido entre dois sujeitos ativos, cabendo ao estado de origem o ICMS calculado com base na alíquota interestadual e ao estado de destino, o diferencial entre a alíquota interestadual e sua alíquota interna. 5. Convênio interestadual não pode suprir a ausência de lei complementar dispondo sobre obrigação tributária, contribuintes, bases de cálculo/alíquotas e créditos de ICMS nas operações ou prestações interestaduais com consumidor final não contribuinte do imposto, como fizeram as cláusulas primeira, segunda, terceira e sexta do Convênio ICMS nº 93/2015.

                                  (…)

                                  10. Ação direta julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade formal das cláusulas primeira, segunda, terceira, sexta e nona do Convênio ICMS nº 93, de 17 de setembro de 2015, do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), por invasão de campo próprio de lei complementar federal.” (destacamos)

 

No mesmo sentido foi o pronunciamento do STF no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.287.019, em sede de repercussão geral, no qual restou fixada a seguinte tese, conforme ementa (parcial) do referido julgamento:

                                  “4. Tese fixada para o Tema nº 1.093: ‘A cobrança do diferencial de alíquota alusivo ao ICMS, conforme introduzido pela Emenda Constitucional nº 87/2015, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais’”.

 

A fim de evitar insegurança jurídica, a Suprema Corte modulou a produção dos efeitos da decisão proferida na ADIN 5469 para o exercício seguinte ao julgamento, isto é, janeiro de 2022. Tal circunstância possibilitou ao Congresso votar e aprovar o PLP 32/21. No entanto, referido PLP somente foi sancionado pelo Executivo Federal em 04.01.2022, originando a LC 190/22. E é em razão dessa sanção e publicação apenas em 2022 que surgem diversas dúvidas.

 

Princípio constitucional da anterioridade tributária e a LC 190/22: efeitos a partir de janeiro de 2023

Retomando a questão quanto à produção de efeitos da LC 190/22, cabe destacar que o art. 3º da referida lei faz referência “(…) observado, quanto à produção de efeitos, o disposto na alínea ‘c’ do inciso III do caput do art. 150 da Constituição Federal”, que prevê o princípio constitucional da anterioridade nonagesimal.

No entanto, tal dispositivo (alínea “c”) deve ser interpretado em consonância com o disposto na alínea “b”, que estabeleceu o princípio geral da anterioridade:

                                  “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

                                  III – cobrar tributos:

                                  b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;

                                  c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;”

 

As regras inseridas nas alíneas “b” e “c” do inciso III, do art. 150 da Constituição asseguram respectivamente: (i) que uma lei que institua ou majore um tributo não pode gerar efeitos no mesmo exercício financeiro de sua publicação, e (ii) um marco temporal de 90 (noventa) dias para a produção de efeitos da norma desde que a lei não tenha instituído ou majorado tributo, pois, neste caso, deve ser observada a alínea “b” (item i).

Isto significa dizer que o princípio da anterioridade nonagesimal (alínea “c”) deve ser interpretado em conjunto com o princípio geral da anterioridade (alínea “b”). Se não houver majoração de tributo existente ou instituição de novo tributo, aplica-se a anterioridade nonagesimal. Já nos casos de majoração ou instituição de tributo, deve ser aplicada a anterioridade geral.

Não pairam dúvidas a respeito da regra de competência constitucional, inserida pela EC 87/15, para a criação de uma nova relação jurídica tributária nas operações interestaduais a consumidores finais não contribuintes do ICMS. Neste sentido já se posicionou o STF quando do julgamento da ADI 5469.

Desta forma, considerando que a LC 190/22 foi publicada em 05.01.2022 e disciplinou a nova obrigação tributária relativa ao ICMS prevista pela EC 87/15, que estabeleceu a responsabilidade pelo recolhimento do diferencial de alíquota, em prol do Estado do destinatário, ao   remetente, em operações interestaduais, de mercadorias ou serviços a consumidor final (não contribuinte), a referida Lei Complementar não pode gerar efeitos no mesmo exercício financeiro de sua publicação, isto é, 2022, razão pela qual somente alcançará os fatos ocorridos a partir de janeiro de 2023.

Por esta razão, o Convênio CONFAZ 236/21 também não irradiará efeitos em relação aos fatos ocorridos a partir de 1º de janeiro de 2022, dada a ineficácia da LC 190/22 no ano de 2022.

 

Conclusão

Diante do exposto, a LC 190/22 somente alcançará os fatos jurídicos ocorridos a partir de janeiro de 2023 sob pena de violação ao princípio constitucional da anterioridade geral (art. 150, III, “b” CF) e ao princípio constitucional da anterioridade nonagesimal (art. 150, III, “c” CF). Da mesma forma, não se pode admitir que o Convênio CONFAZ 236/21 surta efeitos já a partir de 1º. de janeiro de 2022, dada a ineficácia da LC 190/22 no ano de 2022. Portanto, cabe ao contribuinte buscar amparo judicial para preservar o direito de ser submetido aos efeitos da LC 190/22 mediante expressa observância ao disposto no art. 150, III, alíneas “b” e “c” da Constituição.

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